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Sem-abrigo tornam-se guias turísticos

Projecto de turismo sociológico revela lado escondido da cidade holandesa de Utreque.

Margarida Caetano

Se toda a alma tem uma face negra, cada cidade tem a sua parte maldita. É esse lado obscuro que o projecto de turismo sociológico Utrecht Underground resolveu abrir à visitação. A ideia partiu de um grupo de sem-abrigo da cidade holandesa e está a ser dinamizada com o apoio da organização de saúde mental Altrecht.

"Utrecht Underground"

É um domingo de Setembro. Encontramo-nos no posto de turismo, que também aceita reservas. Diana, cabelos mal tingidos, unhas artisticamente esmaltadas, está à nossa espera. Eu, um outro jornalista da AFP, uma professora da Sorbonne, um médico reformado, um grupo de jovens de passagem pelo país. Está contente. Não esperava tanta adesão porque «o roteiro turístico alternativo» só percorre Utreque há duas semanas, explica.

Desde então, por 5 euros, 5 sem-abrigo revelam itinerários subterrâneos, imersos sob as pontes da cidade dos canais, por onde o Reno estreita ruelas e abre labirintos nem sempre visíveis a olho nu. Diana é uma delas. Em 2002, a rua era a sua casa. Nessa época, a cocaína levava-lhe cerca de 500 euros por dia. Marca o tom sem rodeios dos 90 minutos que há-de durar o deambular. Visitamos os avessos que ficam paredes meias com a Catedral de Santa Catarina, construída no séc.XVI, os edifícios Sint Jans Kerk e a Casa da Moeda. Vamos pelos lugares onde Diana dormia, se abrigava da chuva, ou dava um mergulho de graça quando o calor apertava.

Conhece as lojas baratas, os aterros onde se acham tesouros vintage, hambúrgueres suculentos, CD e telemóveis ainda novinhos em folha. Mas também conhece o local onde o poente vale a melhor fotografia ou os canteiros dão flores ainda mais raras, mesmo se tratando da Holanda. É uma narradora exímia. O único senão é que, tal como os outros guias, só fala neerlandês.

«A cidade é mostrada por pessoas com uma história de background único. De certa maneira, a vida obrigou-as a serem os seus grandes exploradores e conhecem-na como a palma da mão. É gente que um dia teve a ideia de partilhar aquilo que conhecia e, por força desse projecto invulgar, aprendeu a socializar e a narrar de modo interessante o que sabe de Utreque», tinha-me avisado na véspera a coordenadora da iniciativa, Simone Lensink.

Não me enganou. Não sendo exactamente aquela mítica e funda descida ao Hades, que tenta a parte maldita que creio existir em todo o ser humano, foi das melhores incursões pelo reverso menos limpo do espe-lho que fiz, nos lugares por onde já viajei.

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