PÚBLICO
Em Coimbra, cirurgia inédita no mundo pôs um doente a ver
Às mãos de António Travassos chegam doentes de todo o mundo, à
procura de um tratamento para os seus casos considerados sem solução.
Cego dos dois olhos, Martinho Santos Martins foi um deles. Hoje sorri de
felicidade.
A coroa de esclera funcionou como uma
espécie de aba para se deslocar toda a córnea, sem se alterar o ângulo
da câmara anterior. A manutenção do ângulo da câmara anterior evitou
complicações, como o desenvolvimento de hipertensão ocular, que levariam
ao insucesso da intervenção. O caso clínico bem sucedido terá os seus
resultados publicados no Atlas de Oftalmologia RL- Eye, uma edição do Centro Cirúrgico de Coimbra.
“Esta
cirurgia prova que nunca devemos desistir de fazer o melhor por cada
doente e, neste caso específico, tínhamos de tentar proporcionar melhor
qualidade de vida, porque este era um caso em que a alternativa era
deixar manter o doente na cegueira”, diz António Travassos. “É uma
verdadeira lição. A lição de que não devemos retirar um olho que tenha
ainda percepção luminosa. É sempre possível pensar de maneira
diferente.”
Geralmente, os doentes com a córnea esbranquiçada
ficam sem tratamento, ou são submetidos a uma cirurgia para substituir
parte da córnea por matéria orgânica inerte e transparente
(queratoprótese). Mas esta nunca foi uma hipótese ponderada por António
Travassos: “Em toda a minha vida, vi quatro doentes com queratoprótese.
Todos eles sofreram inúmeras complicações e voltaram a cegar.”
Com
a cirurgia da translocação de uma parte dos olhos feita há mais de um
mês, o doente não teve até agora qualquer tipo de complicações. “Em
oftalmologia também se fazem milagres”, diz Martinho Santos Martins,
citado num comunicado do centro. E o prognóstico é que possa ir
recuperando gradualmente alguma visão. “Conseguimos ainda manter o olho
esquerdo que, apesar de não ter visão, de um ponto de vista anatómico e
estético era importante”, diz o médico. “Se nesta fase não tivermos
complicações, a probabilidade de as termos no futuro é mínima.”
“Continuar a sonhar”
António Travassos fundou o Centro Cirúrgico de Coimbra há 16 anos, e hoje recebe lá doentes de pelo menos 44 países. “As pessoas andam por todo o lado e quando começam a ficar desesperadas chegam aqui ao centro.”
António Travassos fundou o Centro Cirúrgico de Coimbra há 16 anos, e hoje recebe lá doentes de pelo menos 44 países. “As pessoas andam por todo o lado e quando começam a ficar desesperadas chegam aqui ao centro.”
Dos
países árabes chega uma grande parte destes doentes, geralmente pessoas
com um estatuto económico e social muito elevado. “Uma vez operei uma
irmã de um rei sem saber quem era. Mas, para mim, o que interessava era
que tinha ali uma doente como todos os outros”, conta António Travassos.
“Há pouco tempo tive também o caso de um doente árabe que não recebeu
um visto de Portugal para vir ao centro tratar-se. Isto é muito
estranho, sobretudo quando se quer desenvolver o turismo de saúde.”
A
tecnologia de ponta que usa, como bisturis de diamante, permite-lhe
aperfeiçoar cada vez mais a sua arte. A gravação em 3D das cirurgias é
outro aspecto inédito do seu trabalho. “Em Dezembro de 2009 só se falava
no filme 3D ‘Avatar’, e eu pensei: por que não aplicar isto na
cirurgia?” Com a ajuda da empresa Sony, que cedeu o equipamento, começou
a filmar todas as intervenções cirúrgicas, o que resulta hoje em mais
de três milhões e meio de imagens. “Hoje temos memória futura. Não
podemos chegar a conclusões científicas [só] com o que os outros
escreveram. Temos de documentar, é assim que se faz ciência.”
Com
mais de 60.000 cirurgias realizadas, o médico de 65 anos fez parte da
sua formação nos Estados Unidos, onde praticou cirurgia em macacos. “Foi
na altura um privilégio, porque os macacos eram muito caros.” Quando,
em 1981, regressou a Portugal para integrar os Hospitais da Universidade
de Coimbra, encontrou casos complicadíssimos para começar a sua
carreira. “São hoje os meus grandes amigos, os doentes daquela época,
pelos quais lutei para lhes devolver a visão.”
Hoje, no Centro
Cirúrgico de Coimbra, António Travassos salva da escuridão os milhares
de doentes que todos os anos lhe chegam ao consultório. “Há sempre uma
aprendizagem contínua. Esta é a luta contra a cegueira. E a
possibilidade de pormos os doentes a ver é que nos faz andar nesta
loucura constante de continuar a sonhar.”
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