PÚBLICO

Quem disse que um sem-abrigo e uma voluntária não se podem apaixonar?

Conheceram-se no Porto e é lá que estão a criar uma organização para ajudar outros sem-abrigo a integrarem-se.

Christian deixou a Casa da Rua e tem agora um espaço que partilha com a namorada Fernando Veludo/NFactos
Estava um frio dos diabos. Dora Matos distribuía comida pelos sem-abrigo na Praça da Batalha, no centro do Porto. Outra voluntária reconheceu Christian Georgescu e, entusiasmada, pediu-lhe que lhes tirasse uma fotografia. Os olhares deles cruzaram-se.
Christian chegara à cidade havia três anos. Viajara três dias numa camioneta de Budapeste ao Porto. Três dias de ansiedade, nariz tapado, pupilas dilatadas, dores, náuseas, espirros, bocejos. Para trás ficava uma história criminal que prefere esquecer. Não se livrou da heroína, começou a misturá-la com base de cocaína, a usar “speedball”.
Naquela noite, 3 de Dezembro de 2013, já não dormia encostado ao mercado de São Sebastião, a umas centenas de metros daquela praça. Tão-pouco entrava em lojas para furtar o que lhe viesse às mãos, com o objectivo de despachar tudo na Ribeira. Oito meses disso bastaram-lhe. Aderira a um programa de substituição opiácea. Dormia na Casa da Rua, comunidade de inserção da Santa Casa da Misericórdia do Porto, na Rua Duque de Loulé.
“Cortei com quem andava a roubar”, comentara com o PÚBLICO. “Já para mim acabou. Roubar acabou. Foi uma vida que não gostei. Já para mim acabou.”
Naquela noite, Christian era um homem sorridente, elegante, perfumado. Celebrara 35 anos dias antes e estava orgulhoso de fazer parte da comissão organizadora do encontro “Uma vida como a arte: Existimos! Somos Pessoas!”, a primeira iniciativa do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto (NPISA) a contar com a colaboração de pessoas com experiência de rua.
Nem sabem como ficaram ligados online. Supõem que seguiram uma sugestão da amiga comum. Quando se voltaram a ver, quatro meses depois, numa reunião d’ “Uma vida como a arte”, ele exclamou: “Olha a minha amiga do Facebook!” Ela sorriu. Apresentou-se como voluntária do grupo Arcanjos – amor ao próximo. Queria fazer mais do que distribuir comida.
Dias depois, lá estavam, desta feita numa iniciativa do Grupo de Acção Social do Porto, uma organização não-governamental vocacionada para a ajuda ao desenvolvimento, que também integra o NPISA, uma rede constituída pela Segurança Social e mais de 60 entidades formais e informais de apoio aos sem-abrigo. Convidadas a conversar com os voluntários para os ajudar a serem melhores voluntários, pessoas com experiência de rua queixavam-se dos atrasos, da qualidade da comida, do tratamento preferencial dado a este ou aquele.
“Eu, primeiro, só ouvi”, conta Christian. “Comecei a bater mal com o que estavam a dizer.” Resolveu tomar a palavra. Disse mais ou menos isto: “Gosto de vestir bem, gosto de cheirar bem, gosto de andar limpo. Tudo o que eu tenho vestido foi dado por voluntários. As minhas meias, as minhas cuecas, as minhas calças, a minha camisa, o meu casaco. Você está a dizer mal da comida. Você encontra comida melhor em casa? Não há. Na pensão? Não há. Onde está obrigado a ir? Às carrinhas. As pessoas que estão nas carrinhas deixam a casa delas, as famílias delas, a vida para estar ali, a entregar comida.”
Dora ouviu aquele homem de sotaque estranho, que lhe parecia tão simpático: “Tudo o que disse, a forma como disse, captou a minha atenção. Notei gratidão. Muitas vezes, na rua, não há isso. Parece que é uma obrigação dos voluntários estar ali.” Ele também estava a achar graça àquela mulher, três anos e dez meses mais nova. “Eu estava a ver Dora voluntária. Era agitada, faladora, brincalhona. Era um género de pessoa que eu gostava.”
Calhou cruzarem-se pouco depois em casa de alguém. Ele acompanhou-a ao táxi. Trocaram números de telefone. No dia seguinte, ele ligou-lhe. E no seguinte. E no seguinte. E no seguinte. Ela emprestava-lhe os ouvidos, aconselhava-o. “Eu achava que ele tinha muita necessidade de falar”, diz ela. “De falar sem ser julgado”, esclarece. Foram tomar um café. “Ele dizia que eu era o anjo dele. Até me ofereceu uma asa.”, recorda ela. “Ainda és o meu anjo”, diz ele. “Eu estava a ver alguém que se importava comigo”, prossegue. “E precisavas disso. De alguém que lidasse contigo sem ser por obrigação.”

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