Salva e salva-se: um português numa vila no meio de uma guerra


João Martins vive desde setembro na República Centro-Africana, na pequena vila de Batangafo, e trabalha na organização Médicos Sem Fronteiras
João Martins

Ele vive num país em guerra e partilha casa com 15 pessoas de diferentes nacionalidades. E sim, existem dias ótimos - como quando salva um bebé e a mãe num parto complicado. E sim, existem dias dolorosos - como quando um pai carrega o filho a pé durante 50 km e chega tarde demais ao hospital. João salva e salva-se na República Centro-Africana e é um português a viver num país quase sem portugueses – é a segunda história da série “Em pequeno número”, que o Expresso publica nesta semana de Natal e depois na de ano novo sobre portugueses que vivem em regiões em que quase não os há

Batangafo é uma pequena vila, quente e húmida, perto do rio Ouham. “Bastante verde, especialmente devido à quantidade enorme de mangueiras que, além das ditas mangas, dão uma ótima sombra nos dias mais quentes. Mas, infelizmente, é uma vila tão bonita quanto perigosa.” João trabalha nos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e vive desde setembro no norte da República Centro-Africana, junto à fronteira com o Chade.
Numa vila com mais de 25 mil deslocados internos, dentro de uma região que o Estado não alcança totalmente, o português, de 29 anos, é coordenador de projeto na MSF, a única organização que presta cuidados à população nesta zona.
“Além de termos quatro postos de saúde na periferia da vila, gerimos um hospital com diferentes serviços – cirurgia, medicina interna, pediatria, maternidade, entre outros – que conta com cerca de 175 camas”, conta João Martins, acrescentando que até setembro tiveram 6 mil pessoas hospitalizadas, mais de mil partos e 265 cirurgias de emergência.

Alguns abrigos no campo de deslocados internos em Batangafo
Alguns abrigos no campo de deslocados internos em Batangafo
João Martins
João vive num país onde ocorre uma guerra civil “bastante dura”. “Não porque os diferentes grupos estejam especialmente bem armados, como no Sudão do Sul, mas porque são bastantes, com agendas político-militares diferentes – o que os torna bastante imprevisíveis. A eles somam-se os diversos grupos criminosos que vivem e enriquecem à custa da instabilidade deste país conhecido, entre outras coisas, pelos diamantes de sangue. A população vive com medo, sem esperança, sem futuro – vive-se o dia-a-dia sem se saber se o amanhã vai chegar.”
A segurança é uma das questões centrais para quem trabalha numa zona em conflito e João Martins está responsável pela segurança do projeto e de toda a equipa, com mais de 250 colaboradores. É ele quem impõe as regras.
“Só podemos estar fora da base entre as 6h e as 17h30 - princípio de noite aqui -, temos limitação de zonas na vila onde podemos andar, temos que planear bastante bem as atividades às aldeias na periferia da vila para evitarmos problemas.”
Mas a situação não é nova para ele, pois antes de se mudar para a República Centro Africana viveu no Sudão do Sul, onde passou por duas situações de evacuação – uma delas depois de ter estado debaixo de fogo de artilharia pesada durante quatro dias. “A resposta é sim, sinto-me seguro.”

João no Sudão do Sul durante a resposta de emergência a 15 mil deslocados da comunidade Shilluk
João no Sudão do Sul durante a resposta de emergência a 15 mil deslocados da comunidade Shilluk
João Martins

Daqueles portugueses que queremos encontrar

O dia começa às seis da manhã. “Pequeno-almoço, café e cigarro. Depois vou para o escritório, tenho uma reunião com o meu assistente para uma pequena atualização sobre os incidentes de segurança durante a noite. A partir daí e até às 18h é sempre diferente.”
Vive numa casa partilhada com 15 pessoas de diferentes nacionalidades, que fica a cinco minutos do escritório e do hospital, permitindo-lhe deslocar-se a pé. Tem um quarto só para si – ao contrário do que acontecia no Sudão do Sul, onde partilhava uma tenda com mais sete pessoas. Habitualmente, é nos mercados locais que faz as suas compras. Mas, uma vez por mês, mandam vir produtos alimentares como leite, cereais e arroz da capital, Bangui.
No país vivem 4,7 milhões de pessoas, segundo as Nações Unidas – e 39,85% residem nas cidades. E entre a população viviam 295 cidadãos nascidos em Portugal em 2012, segundo as estatísticas recolhidas pelo Observatório da Emigração junto dos consulados, da ONU e dos institutos de estatística de vários países.
João conhece um outro português no país – o atual comandante da polícia da ONU na missão de paz (MINUSCA). “É daqueles portugueses que todos queremos encontrar quando estamos fora.” Também no Sudão do Sul, sobre o qual o Observatório da Emigração não tem dados, João conheceu dois portugueses.
Na sua rotina diária, depois de ir ao escritório, passa pelo hospital. “Sento-me com os médicos que trabalham connosco. Discutimos os diferentes dilemas e dificuldades, passo algum tempo com alguns dos pacientes – tento compreender as suas histórias de vida, outras vezes reúno-me com as diferentes autoridades da região e de vez em quando. porque também tem de ser, concentro-me no trabalho de secretária – organização, planeamento e análise das atividades.”
Em paralelo à parte mais prática do seu trabalho, há o lado emocional. “É duro caminhar pelo campo de deslocados e ver as condições em que as famílias vivem. É duro ver a falta de esperança nos olhos das pessoas. Todos os dias chegam ao hospital diferentes casos complicados. Não conseguimos salvar toda a gente, é certo. E, sim, existem dias ótimos: o bebé que chora após um parto complicado que não teria lugar fora do nosso hospital, a mama (termo de respeito utilizado para com as mulheres mais velhas) que agradece a cirurgia que lhe permite continuar a alimentar a sua família.”
Mas João também assiste muitas vezes à parte mais difícil. “Existem dias terríveis – o pai que teve de carregar o seu filho mais de 50 km para chegar tarde de mais ao hospital sem que pudéssemos fazer algo para o salvar, os miúdos de 12 anos que chegam com ferimentos de estilhaços de granada incapacitados para a vida. É difícil olhar para o meu dia-a-dia de maneira isolada, os dias que passam são apenas parte de um todo – saber que a cada missão o nosso trabalho teve consequências no alívio do sofrimento desta população.”

"Loja" no mercado de Batangafo
"Loja" no mercado de Batangafo
João Martins

Daoud Ibrahim Hari

João chegou à República Centro-Africana depois de ter vivido e trabalhado no Sudão do Sul, no Uganda e em Timor-Leste, para onde foi em 2011 como assessor logístico das Nações Unidas para as eleições parlamentares e presidenciais. Antes, tinha estudado economia em Coimbra e fez um mestrado em Cooperação e Desenvolvimento Internacional.
“Como muitas outras pessoas, sobrevivia com um salário que era apenas suficiente para continuar a viver em Lisboa, para no mês seguinte continuar a perpetuar o ciclo vicioso da sobrevivência. Saí de Portugal porque queria viver, não porque queria um salário melhor (não o tenho!), mas porque queria fazer algo da minha vida. Algo que, para mim, tivesse verdadeira importância.”
Ainda em 2008, numa viagem pela Jordânia, leu “O Intérprete”, de Daoud Ibrahim Hari. “Foi, sem dúvida, um dos livros que me inspiraram a trabalhar na área. A história de Daoud passa-se no Darfur, bastante perto da região onde fiz a minha primeira missão.” Anos depois, viria a trabalhar no Sudão do Sul e dali passaria para a República Centro-Africana.

Uma vila no meio de uma guerra

Hoje, a vila onde vive na RCA é uma das mais afetadas pelo conflito civil que começou em 2012, numa região partilhada pelos grupos armados Ex-Seleka, que controlam o nordeste do país, e os grupos armados Anti-Balaka, que controlam o sul/sudoeste.
“As consequências são bastante visíveis – a vila divide-se entre o bairro muçulmano - onde estão presentes os grupos armados Ex-Seleka - e o campo de deslocados - refugiados internos - e outros bairros cristãos onde se encontram os Anti-Balaka.”
Batangafo está no meio de uma guerra entre grupos armados, “que transformou toda uma população que vivia em harmonia e agora se encontra fraturada por ódios inter-religiosos”.
Numa região onde, por tradição, as pessoas vivem da pesca e da agricultura, muito mudou com a guerra e com a insegurança. “Os diferentes meios de subsistência foram bastante afetados, muita gente deixou os campos, muitos pescadores têm medo de ir ao rio, onde provavelmente seriam assaltados.”

Rio em Batangafo onde as mulheres lavam a roupa ou atravessam de piroga com diferentes mercadorias para vender
Rio em Batangafo onde as mulheres lavam a roupa ou atravessam de piroga com diferentes mercadorias para vender
João Martins
Uma das coisas que mais o marcam? “A energia e a resiliência dos meus colegas de trabalho – não os expatriados mas os locais, os centro-africanos. Muitos vivem com as suas famílias em situações precárias, na mesma situação de perigo iminente que toda a população. Não obstante todas as dificuldades, trabalham todos os dias no hospital para ajudar outras pessoas independentemente da sua religião, etnia ou participação no conflito – eles sim, são os verdadeiros heróis.”
E entre tudo o que tem vivido, João sublinha aos 29 anos a sensação de ter um sentido de missão. “Saber que quando aqui estou, enquanto parte dos Médicos Sem Fronteiras, contribuo para algo maior que eu. Em Portugal nunca senti isso.”
Quanto a um regresso a Portugal, por enquanto só entre missões. “Adoro Portugal, adoro Lisboa, adoro a Barquinha. Tenho os meus amigos e a minha família. Qualquer dia volto mesmo. Para fazer o quê, ainda não sei, mas qualquer coisa se há de arranjar.”
E há algo que espera nunca vir a perder. “A verdade é que o que se tira deste trabalho é imensurável. Tudo aquilo de que sentimos falta – o duche de água quente, a cerveja com os amigos, a família – parece tão pequeno quando comparado a tudo o que retiras pessoal e emocionalmente. Acho que é isso mesmo, o sentir-me preenchido – é isso que já não consigo, nem quero, deixar de sentir.”

Alguns locais no mercado do campo de deslocados
Alguns locais no mercado do campo de deslocados
João Martins

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