Salva e salva-se: um português numa vila no meio de uma guerra
22.12.2015
João
Martins vive desde setembro na República Centro-Africana, na pequena
vila de Batangafo, e trabalha na organização Médicos Sem Fronteiras
João Martins
Ele
vive num país em guerra e partilha casa com 15 pessoas de diferentes
nacionalidades. E sim, existem dias ótimos - como quando salva um bebé e
a mãe num parto complicado. E sim, existem dias dolorosos - como quando
um pai carrega o filho a pé durante 50 km e chega tarde demais ao
hospital. João salva e salva-se na República Centro-Africana e é um
português a viver num país quase sem portugueses – é a segunda história
da série “Em pequeno número”, que o Expresso publica nesta semana de
Natal e depois na de ano novo sobre portugueses que vivem em regiões em
que quase não os há
Batangafo
é uma pequena vila, quente e húmida, perto do rio Ouham. “Bastante
verde, especialmente devido à quantidade enorme de mangueiras que, além
das ditas mangas, dão uma ótima sombra nos dias mais quentes. Mas,
infelizmente, é uma vila tão bonita quanto perigosa.” João trabalha nos
Médicos Sem Fronteiras (MSF) e vive desde setembro no norte da República
Centro-Africana, junto à fronteira com o Chade.
Numa vila com
mais de 25 mil deslocados internos, dentro de uma região que o Estado
não alcança totalmente, o português, de 29 anos, é coordenador de
projeto na MSF, a única organização que presta cuidados à população
nesta zona.
“Além de termos quatro postos de saúde na periferia
da vila, gerimos um hospital com diferentes serviços – cirurgia,
medicina interna, pediatria, maternidade, entre outros – que conta com
cerca de 175 camas”, conta João Martins, acrescentando que até setembro
tiveram 6 mil pessoas hospitalizadas, mais de mil partos e 265 cirurgias
de emergência.
Alguns abrigos no campo de deslocados internos em Batangafo
João Martins
João
vive num país onde ocorre uma guerra civil “bastante dura”. “Não porque
os diferentes grupos estejam especialmente bem armados, como no Sudão
do Sul, mas porque são bastantes, com agendas político-militares
diferentes – o que os torna bastante imprevisíveis. A eles somam-se os
diversos grupos criminosos que vivem e enriquecem à custa da
instabilidade deste país conhecido, entre outras coisas, pelos diamantes
de sangue. A população vive com medo, sem esperança, sem futuro –
vive-se o dia-a-dia sem se saber se o amanhã vai chegar.”
A
segurança é uma das questões centrais para quem trabalha numa zona em
conflito e João Martins está responsável pela segurança do projeto e de
toda a equipa, com mais de 250 colaboradores. É ele quem impõe as
regras.
“Só podemos estar fora da base entre as 6h e as 17h30 -
princípio de noite aqui -, temos limitação de zonas na vila onde podemos
andar, temos que planear bastante bem as atividades às aldeias na
periferia da vila para evitarmos problemas.”
Mas a situação não é
nova para ele, pois antes de se mudar para a República Centro Africana
viveu no Sudão do Sul, onde passou por duas situações de evacuação – uma
delas depois de ter estado debaixo de fogo de artilharia pesada durante
quatro dias. “A resposta é sim, sinto-me seguro.”
João no Sudão do Sul durante a resposta de emergência a 15 mil deslocados da comunidade Shilluk
João Martins
Daqueles portugueses que queremos encontrar
O
dia começa às seis da manhã. “Pequeno-almoço, café e cigarro. Depois
vou para o escritório, tenho uma reunião com o meu assistente para uma
pequena atualização sobre os incidentes de segurança durante a noite. A
partir daí e até às 18h é sempre diferente.”
Vive numa casa
partilhada com 15 pessoas de diferentes nacionalidades, que fica a cinco
minutos do escritório e do hospital, permitindo-lhe deslocar-se a pé.
Tem um quarto só para si – ao contrário do que acontecia no Sudão do
Sul, onde partilhava uma tenda com mais sete pessoas. Habitualmente, é
nos mercados locais que faz as suas compras. Mas, uma vez por mês,
mandam vir produtos alimentares como leite, cereais e arroz da capital,
Bangui.
No país vivem 4,7 milhões de pessoas, segundo as Nações
Unidas – e 39,85% residem nas cidades. E entre a população viviam 295
cidadãos nascidos em Portugal em 2012, segundo as estatísticas
recolhidas pelo Observatório da Emigração junto dos consulados, da ONU e
dos institutos de estatística de vários países.
João conhece um
outro português no país – o atual comandante da polícia da ONU na missão
de paz (MINUSCA). “É daqueles portugueses que todos queremos encontrar
quando estamos fora.” Também no Sudão do Sul, sobre o qual o
Observatório da Emigração não tem dados, João conheceu dois portugueses.
Na
sua rotina diária, depois de ir ao escritório, passa pelo hospital.
“Sento-me com os médicos que trabalham connosco. Discutimos os
diferentes dilemas e dificuldades, passo algum tempo com alguns dos
pacientes – tento compreender as suas histórias de vida, outras vezes
reúno-me com as diferentes autoridades da região e de vez em quando.
porque também tem de ser, concentro-me no trabalho de secretária –
organização, planeamento e análise das atividades.”
Em paralelo à
parte mais prática do seu trabalho, há o lado emocional. “É duro
caminhar pelo campo de deslocados e ver as condições em que as famílias
vivem. É duro ver a falta de esperança nos olhos das pessoas. Todos os
dias chegam ao hospital diferentes casos complicados. Não conseguimos
salvar toda a gente, é certo. E, sim, existem dias ótimos: o bebé que
chora após um parto complicado que não teria lugar fora do nosso
hospital, a mama (termo de respeito utilizado para com as
mulheres mais velhas) que agradece a cirurgia que lhe permite continuar a
alimentar a sua família.”
Mas João também assiste muitas vezes à
parte mais difícil. “Existem dias terríveis – o pai que teve de
carregar o seu filho mais de 50 km para chegar tarde de mais ao hospital
sem que pudéssemos fazer algo para o salvar, os miúdos de 12 anos que
chegam com ferimentos de estilhaços de granada incapacitados para a
vida. É difícil olhar para o meu dia-a-dia de maneira isolada, os dias
que passam são apenas parte de um todo – saber que a cada missão o nosso
trabalho teve consequências no alívio do sofrimento desta população.”
"Loja" no mercado de Batangafo
João Martins
Daoud Ibrahim Hari
João
chegou à República Centro-Africana depois de ter vivido e trabalhado no
Sudão do Sul, no Uganda e em Timor-Leste, para onde foi em 2011 como
assessor logístico das Nações Unidas para as eleições parlamentares e
presidenciais. Antes, tinha estudado economia em Coimbra e fez um
mestrado em Cooperação e Desenvolvimento Internacional.
“Como
muitas outras pessoas, sobrevivia com um salário que era apenas
suficiente para continuar a viver em Lisboa, para no mês seguinte
continuar a perpetuar o ciclo vicioso da sobrevivência. Saí de Portugal
porque queria viver, não porque queria um salário melhor (não o tenho!),
mas porque queria fazer algo da minha vida. Algo que, para mim, tivesse
verdadeira importância.”
Ainda em 2008, numa viagem pela
Jordânia, leu “O Intérprete”, de Daoud Ibrahim Hari. “Foi, sem dúvida,
um dos livros que me inspiraram a trabalhar na área. A história de Daoud
passa-se no Darfur, bastante perto da região onde fiz a minha primeira
missão.” Anos depois, viria a trabalhar no Sudão do Sul e dali passaria
para a República Centro-Africana.
Uma vila no meio de uma guerra
Hoje,
a vila onde vive na RCA é uma das mais afetadas pelo conflito civil que
começou em 2012, numa região partilhada pelos grupos armados Ex-Seleka,
que controlam o nordeste do país, e os grupos armados Anti-Balaka, que
controlam o sul/sudoeste.
“As consequências são bastante visíveis
– a vila divide-se entre o bairro muçulmano - onde estão presentes os
grupos armados Ex-Seleka - e o campo de deslocados - refugiados internos
- e outros bairros cristãos onde se encontram os Anti-Balaka.”
Batangafo
está no meio de uma guerra entre grupos armados, “que transformou toda
uma população que vivia em harmonia e agora se encontra fraturada por
ódios inter-religiosos”.
Numa região onde, por tradição, as
pessoas vivem da pesca e da agricultura, muito mudou com a guerra e com a
insegurança. “Os diferentes meios de subsistência foram bastante
afetados, muita gente deixou os campos, muitos pescadores têm medo de ir
ao rio, onde provavelmente seriam assaltados.”
Rio em Batangafo onde as mulheres lavam a roupa ou atravessam de piroga com diferentes mercadorias para vender
João Martins
Uma
das coisas que mais o marcam? “A energia e a resiliência dos meus
colegas de trabalho – não os expatriados mas os locais, os
centro-africanos. Muitos vivem com as suas famílias em situações
precárias, na mesma situação de perigo iminente que toda a população.
Não obstante todas as dificuldades, trabalham todos os dias no hospital
para ajudar outras pessoas independentemente da sua religião, etnia ou
participação no conflito – eles sim, são os verdadeiros heróis.”
E
entre tudo o que tem vivido, João sublinha aos 29 anos a sensação de
ter um sentido de missão. “Saber que quando aqui estou, enquanto parte
dos Médicos Sem Fronteiras, contribuo para algo maior que eu. Em
Portugal nunca senti isso.”
Quanto a um regresso a Portugal, por
enquanto só entre missões. “Adoro Portugal, adoro Lisboa, adoro a
Barquinha. Tenho os meus amigos e a minha família. Qualquer dia volto
mesmo. Para fazer o quê, ainda não sei, mas qualquer coisa se há de
arranjar.”
E há algo que espera nunca vir a perder. “A verdade é
que o que se tira deste trabalho é imensurável. Tudo aquilo de que
sentimos falta – o duche de água quente, a cerveja com os amigos, a
família – parece tão pequeno quando comparado a tudo o que retiras
pessoal e emocionalmente. Acho que é isso mesmo, o sentir-me preenchido –
é isso que já não consigo, nem quero, deixar de sentir.”
Alguns locais no mercado do campo de deslocados
João Martins
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