PÚBLICO
As crianças doentes sem cura já têm uma “casa” quando saírem do hospital
Primeira criança a chegar ao Kastelo tem uma doença crónica
complexa e estava há 11 meses internada num hospital. Unidade de
cuidados continuados e paliativos pediátricos é inaugurada nesta
sexta-feira pelo Presidente da República.
No Kastelo, pais e mães vão poder acompanhar filhos com doenças graves e incuráveis
Paulo Pimenta
No Kastelo, pais e mães vão poder acompanhar os filhos (a unidade acolherá crianças e jovens até aos 17 anos) ou mesmo descansar um pouco. “Ter um filho muito doente é extremamente duro, a vida fica completamente desfeita”, enfatiza Teresa Fraga, presidente da associação Nomeiodonada e enfermeira especializada em cuidados intensivos pediátricos no Hospital de Santo António, no Porto, que se habituou a lidar de perto com crianças com doenças muito complicadas, algumas com final infeliz. Crianças que, muitas vezes, ficam em casa quase abandonadas à sua sorte ou então são obrigadas a permanecer nos hospitais semanas e meses a fio.
Como o menino de 12 anos com uma doença crónica complexa que estava “há 11 meses internado num quarto” no Centro Materno-Infantil do Norte e que será o primeiro a beneficiar da nova estrutura. “Deve entrar nos próximos dias”, diz Teresa, que se recorda de casos bem mais complicados, como um que ficou tristemente para a história, o de uma criança com uma miopatia grave que passou os 11 anos da sua vida nos cuidados intensivos do antigo Hospital Maria Pia. “Foi quatro vezes à rua”, lembra.
Foram precisas grandes doses de persistência e tenacidade para
erguer — reerguer é a palavra mais exacta — a casa senhorial deixada em
testamento, no século passado, por Marta Ortigão às irmãs hospitaleiras
do hospital pediátrico Maria Pia para benefício de crianças “doentes ou
desemparadas”. O edifício permaneceu encerrado ao longo de algumas
décadas, até que o Centro Hospitalar do Porto concedeu à associação o
direito de superfície por 28 anos.
Quando arrancou, a associação
Nomeiodonada — “no meio do nada é como os pais se sentem quando os
filhos entram numa unidade de cuidados intensivos, dizem que é como se
estivessem no deserto”, explica a enfermeira — tinha mesmo muito pouco.
Cada sócio inicial — oito profissionais de saúde e um pai — participou
com 32 euros. Daí até aos 2,3 milhões de euros que foi necessário
angariar para custear a obra bastaram meia dúzia de anos. De resto,
quase tudo no Kastelo é doado, desde os tapetes aos candeeiros, aos
móveis e mesmo vários equipamentos de saúde.
Tudo ali foi pensado
para mascarar o facto de esta ser, afinal, uma unidade de saúde. Não há
refeitório, mas sim “sala de jantar, como em nossa casa”, os enfermeiros
e auxiliares vestem informais t-shirts em vez de batas, há
bonecos pintados em todas as paredes. Uma "sala de terapias" está
equipada com tudo o que é necessário para exercitar as crianças, numa
ala à parte e que foi construída de raiz ficam os quartos, todos com
saída para os jardins.
“É um pequeno hospital, mas tentámos desconstruir essa ideia”,
explica José Couceiro da Costa, o empresário que começou por ser
voluntário e agora é director financeiro da associação, depois de ficar
com “uma dívida de vida para com o Serviço Nacional de Saúde”.
Complicações na sequência de uma cirurgia levaram o seu filho mais novo a
permanecer quase dois meses em coma no Hospital de Santo António e José
nunca esquecerá o apoio dos profissionais que o trataram.
Enquanto
vai falando com os operários que tratam dos últimos retoques e com o
padre da paróquia de S. Mamede de Infesta que acaba de trazer o oratório
e o crucifixo para a sala de oração, José não esconde a sua preocupação
com a sustentabilidade do Kastelo. Com 30 camas, só foi possível
contratualizar com o Ministério da Saúde dois terços, numa
experiência-piloto que custará cerca de 700 mil euros por ano. “Não
havia dinheiro para mais”, lamenta o empresário, que teme que a
contribuição estatal para as 20 camas — dez em internamento, dez em
ambulatório — não chegue para custear as despesas fixas e o pagamento à
equipa de profissionais, que conta com médicos, enfermeiros, psicólogos e
fisioterapeutas, entre outros.
Na associação todos estão, porém,
habituados a fazer esticar o dinheiro. Muitas das salas e quartos do
Kastelo têm mecenas. Há empresas, desde metalúrgicas a têxteis, mas
também não faltam pessoas singulares a patrocinar a causa. Graças à
campanha Arredonda levada a cabo pelo Lidl, foi possível juntar
um milhão de euros, o prémio BPI Capacitar representou mais 100 mil
euros, a Câmara de Matosinhos contribuiu com outros 300 mil, a Missão
Sorriso doou 36 mil euros, enumeram. Mas muitos mais contribuíram.
“Milhares de pessoas ajudaram. Portugal inteiro está aqui reunido”,
frisam.
A casa também foi idealizada a pensar nos pais. Pais muitas
vezes completamente exaustos, esgotados com o peso de terem um filho
gravemente doente. Para eles, o Kastelo reserva o “quarto mais atípico
de Portugal” — uma sala com três camas, duas mesinhas de cabeceira e
nenhuma porta, “para não se sentirem constrangidos” — no primeiro piso
do palacete, que alberga ainda uma biblioteca e duas salas de formação. A
família, frisa-se, “é parte integrante do Kastelo”: às terças e quintas
“cuida-se” das mães, ao domingo, dos pais, e, ao sábado, dos irmãos.
Cá
fora, no jardim, foi criado um espaço recatado, atrás de treliças com
heras, para os pais “chorarem”. “Em nenhum idioma existe um vocábulo
para expressar a perda de um filho. Quando se perde um pai fica-se
órfão, quando se perde um marido ou mulher fica-se viúvo. E se se perder
um filho? Não há palavras. Se for filho único, deixa-se mesmo de ser
pai ou mãe”, reflecte José Couceiro. No Kastelo, todos estão preparados
para dar apoio no luto.
Teresa, que se habituou a falar com as
crianças nos cuidados intensivos mesmo quando estão em coma — “elas não
estão surdas” —, não abdica do seu lema. Quer que tenham “o melhor de
tudo” enquanto a vida durar: “A filosofia do Kastelo é dar vida aos dias
das crianças e não dias à vida.”
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