Renascença
"O Conde Ferreira é um manicómio, mas é o sítio no mundo onde existe mais amor. Ali existe Deus"
Miguel Borges descreve os dias passados no hospital psiquiátrico
04-06-2015 por João Carlos Malta
Embarquemos então com Miguel nesta viagem pelos enormes claustros do
primeiro hospital psiquiátrico construído de raiz para o efeito, o Conde
Ferreira, no Porto. E vamos fazer uma tentativa arriscada: entrar na
mente dos que agora lá habitam.
Antes, uma paragem prévia: vamos ao contexto. Miguel Borges vai para
capital do Norte para participar num documentário do amigo Jorge
Pelicano, “Pára-me de repente o pensamento”, que chegou recentemente às
salas de cinema. Há um segundo objectivo: levar um banho de realidade e
escrever uma peça que abordará a temática da doença mental. Isto era o
que era para ser; porém, foi muito mais do que isso.
Ainda antes de pormos os pés no Conde Ferreira através das palavras
de Miguel Borges, abre-se espaço à dúvida. Como é que um actor prepara
uma coisa destas? Resposta desarmante: “Não preparei. Preparar é meter
umas cuecas na mochila, é meter umas meias, e siga para bingo. Um
caderno e uma caneta e mergulhar numa viagem.”
Espera lá, não há método nenhum? Há. “O processo foi despreparar-me
completamente. Foi o inverso: ‘Como é que tu te preparas,
despreparando-te?’ Tirando qualquer tipo de ideia que tivesses na cabeça
sobre aquele universo, sobre aquelas pessoas. Nem sequer pensava no
documentário. Não me interessa, estou despreparado, estou disponível,
estou a aprender”, conta.
Preconceitos à porta, vamos finalmente “entrar” no Conde Ferreira.
Algo que para Miguel não precisava de ter como motivo o trabalho. “Não
era preciso estar sequer num projecto para passar ali três semanas ou um
mês. Aquilo alimenta-te bastante, faz-te crescer”.
Brincar com o medoO universo da doença mental é
um espaço em que o GPS que usamos “cá fora” se desorienta. É o
desconhecido. E tudo o que não conhecemos gera à maioria medo. Apesar do
“trabalho de despreparação” que o actor fez, os medos estão lá. É
difícil tirá-los das gavetas em que estão arrumados dentro da cabeça.
“Nos primeiros dias, chegas e olhas para as caras de alguns gajos e
pensas: ‘Ele vai-me matar, vai-me espetar uma faca.’ Só as caras
[pausa], as caras… [pausa] Com o tempo, começas a conhecer as pessoas e
até lhes dás beijinhos na careca”, pormenoriza.
Mas até chegar aos beijinhos, no labirinto psicológico do medo há
mais umas armadilhas para desactivar. O sol cai lá fora. “Nas primeiras
noites, dividia o quarto com o Chico, meu grande, grande amigo. Confesso
que tive receio. Medo é forte de mais”, relembra.
Pára, repensa. E reformula. “Posso ter tido medo, ainda assim nunca o
alimentei”. Nunca também é demasiado forte. Miguel alinha de novo o
pensamento, como que à procura das palavras que melhor definam os
sentimentos. “Se tu o alimentares, também fazes uma viagem muito
interessante. Decides andar pelos corredores. Metes-te ali em situações,
e começas a pensar: ‘Este gajo está aqui, não era suposto´”.
O que fazer na escuridão de um hospital psiquiátrico? Miguel avançou.
No entanto, havia uma pergunta que o absorvia: “E se te espetarem uma
faca?” A resposta racional vinha a seguir: “Não espetam. Já estou
preparado para isso.”
Ainda assim, o que é que se deve fazer quando é noite e nos cruzamos
com alguém? Não há respostas. É “bungee jumping”. Sem fio. “Aproximas-te
da pessoa. É de noite e o silêncio… quando ele te cruza o olhar,
pensas: ‘Olho ou não olho, o que é que é melhor?’ Nunca sabes, não há
padrões. Nunca sabes o que é que vai na cabeça daqueles gajos. Em
princípio não acontece nada. Mas, uns meses antes de lá ter chegado,
houve um tipo que partiu tudo”.
O actor Miguel Borges passou 21 dias no hospital psiquiátrico Conde Ferreira
Não aconteceu nada. Miguel está cá para partilhar a experiência, e, contas feitas, assegura que nunca dormiu tão bem. Medos para trás das costas, lugar para as surpresas. Prepare-se para a crueza das palavras.
“Aquilo é um lar, é um microcosmo perfeito. Nos primeiros dias tens
um impacto enorme, ficas chocado e fascinado com aquelas mentes, com
aqueles corpos, com os gajos de manhã em fila a tomar banho. Todos nus,
com os corpos todos torcidos, a baba, as cabeças deformadas. É muito
rico do ponto de vista de choque e de fascínio. É uma montanha russa de
emoções”, recorda Miguel, acrescentando que, três ou quatro dias depois,
o foco se começa a deslocar para os que estão ao lado. E quem é são
eles? Uma pista, vestem-se de branco.
Amarrar é amar“Começamos a olhar para quem muda a
fralda de cinco em cinco minutos, se for preciso, que dá de comer na
boca, que mete o ‘outro’ na cama, que cose a cabeça ao tipo que está a
bater com ela na parede, que o senta, que torna a sentá-lo, e que o
amarra a uma cadeira se for preciso. Esta é uma cena violentíssima, mas
não é… É apenas para ele não bater com a cabeça. E fica dois ou três
dias amarrado. Essas pessoas são os enfermeiros, os técnicos e os
auxiliares. São brilhantes, são fundamentais, são seres humanos muito
especiais”, enfatiza.
Contudo, o tal microcosmo perfeito também tem que ver com o conceito
de família. E aí são os de lá de dentro que o constroem. Sem laços de
sangue, mas com as amarras da vivência. “Há os gajos mais capazes – há
uns que são independentes, lavam-se sozinhos e fazem a barba – e há
outros que não conseguem sequer comer. Uns ajudam os outros. É meio à
bruta porque o corpo deles fica diferente devido à medicação. Tens o
gajo a secar outro depois do banho. Dá cá o braço, mete o outro. E
veste-o. Tudo com um amor bruto, com um amor eficaz. Agora é vestir,
agora é comer. É brutalíssimo”, descreve Miguel, sentindo cada palavra
que lhe sai da boca.
Vamos fazer uma pausa para Miguel explicar como ficou este hospital,
este espaço e esta experiência gravados na memória. “É um bocadinho do
mundo que é um manicómio, que é louco, que tem gajos aos gritos e às
vezes têm de os agarrar e medicá-los (respira profundamente) … No
entanto, é perfeito. É o sítio do mundo onde existe mais amor, mais
amor. Ali é onde existe Deus. Se há filhos de Deus, é ali. São os
protegidos de Deus. São crianças adultas. Se quiseres falar de algo
superior, eles são misteriosos”.
As palavras saem em catadupa. É torrencial e parece que Miguel está
de novo no Conde Ferreira. Não está, é um exagero. Porém vai lá muitas
vezes desde que passou três semanas naquele espaço. Cada passagem pelo
Porto é uma passagem pelo Conde Ferreira. Volta para ver os amigos. Às
vezes nem precisa. O telemóvel faz esse trabalho. “Noutro dia liga-me o
Alberto e diz-me: Actor Miguel, fala o actor Alberto”(risos) [Alberto é
um dos “actores” de “Pára-me de Repente o Pensamento”].
Caminho de não retorno. Uma nova catedralVai lá
voltar sempre. Porquê? Porquê essa visceralidade toda? “Sais de lá com a
sensação de que dás tudo, mas que recebes muito mais do que o que dás.
Criei ali relações que são para a vida, tornaram-se vitais e
necessárias”, adianta.
Miguel sublinha ainda que tudo isto o enriqueceu muito. “Aprendi 47
pessoas!”, exclama. Todas muito diferentes. “Aprendi o tempo, a
paciência, a escutar, a relativizar”. E avança mais fundo, pela
epiderme, derme, e por aí fora. Sem parar. “A aprendizagem é celular, é
do corpo, é física, não é racional. Para mim é difícil partilhar
experiências. Não tenho esse hábito de relatar, porque as guardo muito
no corpo”.
Todavia, para chegar a este ponto foi preciso saltar algumas
barreiras. A maior de todas foi a comunicação, sem dúvida. “É mais
difícil comunicar com eles, perdes-te para te poderes encontrar. Tens de
voltar ao zero, de nascer de novo, de saber ouvir”. Há ainda os “horse
jumps”, saltos de cavalo em tradução literal, que ilustram uma conversa
que começa numa história maternal e acabava muito, muito longe do tema
de partida.
Um delesComo Miguel os vê a eles, já temos uma
aproximação. Contudo, como é que ele era visto pelos habitantes do Conde
Ferreira? Não temos testemunhos em discurso directo de quem poderia
fazer essa heteroavaliação. Vamos, então, à auto-avaliação do actor.
“Muitos chegavam ao pé do Jorge (realizador) ou da Rosa (produtora) e
diziam: ‘Ele está assim por causa da medicação.’ Muitos deles não
perceberam que estava lá como actor, para eles estava em tratamento. Era
um deles”, garante.
No Conde Ferreira afirma não ter encontrado nem mais nem menos do que
cá fora. Apenas a intensidade muda. Por isso, não saiu de lá 21 dias.
Rodemos então o botão do ‘intensómetro’ até ao máximo. “Sim, nunca saí. O
que é que vinha cá fazer fora? Não se passa nada cá fora. E aquilo é
tudo muito verdadeiro, é tudo muito… ver-da-dei-ro”, repete para ver se
entendemos mesmo.
E prossegue de uma assentada. “Sentes-te muito rico, experiencias a
tua humanidade. Tu ris e choras. Mas quando ris, ris, e quando choras,
choras. Tudo o que tu fazes… é. Tudo tem uma importância brutal. É
importante para perceber que estás vivo. Que tens um coração. O que
importa são os outros. O que faz sentido é ajudar. É estar presente, é
dar a mão. O toque a que não ligamos… E o toque fala muito”.
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