VISÃO
Destravar as defesas para travar o cancro
A combinação de duas moléculas biológicas, que levam o sistema imunitário a combater os tumores, está a entusiasmar os oncologistas
Imagens de PET (Tomografia por
Emissão de Positrões) antes do tratamento com molécula
anti-PD-L1 e 12
semanas após o início da terapêutica
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O pior de tudo era a falta de ar. Atrapalhava os passeios de
bicicleta e as idas à horta. A tosse persistente e a perda de peso
ajudou a compor a suspeita. Depois de alguns exames, o diagnóstico
chegou inequívoco, num dia de novembro de 2013: cancro do pulmão,
inoperável. Mário Nolasco nunca fumou, "a não ser por brincadeira", mas
trabalhou na soldadura, numa altura em que se facilitava nos filtros de
proteção, e teve um hobby pouco amigo dos pulmões, a columbofilia. Mário
Nolasco conta-nos a história sem dramas. A uma semana do seu 74.º
aniversário, voltou a ir à horta perto de casa, em Fermentelos, Águeda, a
fazer 10 a 15 quilómetros de bicicleta por dia e a apresentar umas
bochechas rosadas, de quem vende saúde.
Nesta parte da conversa, entra o filho, enfermeiro, com o mesmo nome e
igual serenidade, para acrescentar os pormenores médicos. Depois da
quimioterapia, já com muito bons resultados, Mário Nolasco foi chamado a
participar num ensaio clínico a uma nova molécula e, desde abril, de
três em três semanas segue para o Hospital dos Covões, Centro Hospitalar
de Coimbra, para levar a injeção. A TAC feita depois dos primeiros
tratamentos explica o bom aspeto: o tumor voltou a encolher e não há
progressão da doença.
"São resultados espetaculares," entusiasma-se o oncologista Fernando
Barata, que conduziu o ensaio clínico e acabou de regressar da ASCO o
maior congresso do mundo na área da oncologia. Este ano, só se falou de
imunoterapia uma forma de tratamento que estimula o sistema imunitário a
combater o tumor. Quando se forma um cancro, as nossas defesas são
convocadas e, boa parte das vezes, dão conta, sozinhas, das células
malignas (tal como acontece quando se apanha uma gripe). Mas o tumor tem
várias estratégias de sobrevivência e uma delas passa por bloquear o
sistema de defesa, através da proteína PD-L1 que impede as células T de
fazer o seu trabalho. Com as novas moléculas, interrompe-se a ação da
PD-L1. "Durante anos tentámos acordar o sistema imunitário. Mas agora já
percebemos que não vale a pena acelerá-lo se tivermos este travão de
mão puxado", ilustra o imunologista do Instituto de Medicina Molecular,
Bruno Silva-Santos.
Estas novas terapias, da classe dos anticorpos monoclonais, começaram
por ser testadas em melanoma, com resultados muito surpreendentes, que
levaram à aprovação do ipilimumab a primeira molécula biológica indicada
para o tratamento da doença que em estado avançado tem um péssimo
prognóstico. "O melanoma é um tumor causado por uma agressão aberrante, a
radiação ultravioleta, que é muito potente. Logo o tumor é muito
imunogénico (desencadeia uma resposta imunitária)", justifica Bruno
Silva-Santos. "Em tumores como o da mama, com uma componente hormonal,
os resultados já não são tão bons." Depois do cancro da pele, vieram os
testes em pulmão (onde também há uma causa externa - o tabaco - muito
preponderante), e o rim.
De semanas a meses
"Num dos ensaios apresentados na ASCO, sobre a molécula nivolumab,
passou-se de uma sobrevida de oito meses para 18 meses. Isto em doentes
em estado avançado", continua Fernando Barata. "Em vinte anos nunca vi
resultados destes. Quando conseguíamos que vivessem um ano e meio era
muito bom. Agora, com os novos medicamentos, tenho doentes que continuam
vivos ao fim de 2,5 anos."
Marta Soares, diretora da Clínica do Pulmão, do Instituto Português
de Oncologia do Porto, também se mostra entusiasmada com este tipo de
terapias. "Pela primeira vez, o alvo não são as células tumorais, mas o
ambiente que as rodeia." Outra das vantagens é a quase ausência de
efeitos secundários. "O objetivo, para já, tem sido controlar a doença
em estadios avançados, mas agora vai começar a usar-se em fases mais
precoces, em combinação com a quimioterapia", avança Marta Soares. "Há
dez anos falávamos em aumento de semanas de vida. Agora falamos em meses
e com qualidade", continua.
Para já, nenhuma destes novos medicamentos está aprovado na Europa.
"Às vezes, aparecem-me doentes a quem me gostaria de prescrever um
destes novos tratamentos, mas ainda não é possível", lamenta Fernando
Barata. Outra questão que preocupa os médicos e os doentes é o acesso,
depois da aprovação pela Agência Europeia do Medicamento. Quando chegam
ao mercado, estas substâncias têm preços exorbitantes. Desta vez, a
concorrência, com a existência de várias moléculas quase na mesma fase
de desenvolvimento, pode contribuir para baixar o preço de medicamentos
"quatro mil vezes mais caros do que o ouro", comparou Leonard Saltz,
chefe do Serviço de Oncologia Gastrointestinal no Memorial Sloan
Kettering Cancer Center, EUA, referindo-se ao ipilimumab (que pode
custar 100 mil euros por dose), numa das sessões da ASCO dedicadas ao
custo dos medicamentos inovadores. "O processo de fabrico é complicado.
Tratam-se de moléculas biológicas, produzidas por células", justifica
Bruno Silva-Santos. De qualquer modo, são tempos de mudança no
tratamento do cancro. Não se pode ainda falar de uma cura. Mas pode ser o
princípio do fim.
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