Medicamento português vai ser testado em doentes com cancro avançado
Não é todos os dias que um fármaco desenvolvido em Portugal chega à
fase de ensaios nas pessoas, muito menos na área do cancro. É isso que
vai acontecer com um medicamento criado pela empresa Biotecnol, que para
tal estabeleceu uma parceria com o Cancer Research do Reino Unido.
Linfócito T, uma célula imunitária que o novo medicamento recruta para combater o cancro
Instituto Nacional de Doenças Alérgicas e Infecciosas dos EUA. A Biotecnol, empresa portuguesa que desenvolve medicamentos que usam o
nosso próprio sistema imunitário para atacar as células cancerosas,
acaba de estabelecer uma parceria com um centro de oncologia britânico –
o Cancer Research do Reino Unido (CRUK) – para fazer um ensaio clínico
de fase inicial em doentes com cancro avançado. O que vai ser testado em
45 doentes em hospitais londrinos, no final de 2018, é um medicamento
que a Biotecnol criou como peças de lego ao longo de dois anos. Faz parte dos chamados “medicamentos biológicos” ou “biofármacos”: em
vez de terem sido sintetizados quimicamente, servem-se dos mecanismos
biológicos do corpo para combater uma doença. No caso do novo
medicamento, procura usar certas células imunitárias do doente – os
linfócitos T – para destruir as células cancerosas, pelo que faz parte
também das “imunoterapias oncológicas”. Já há no mercado algumas, por
exemplo para o melanoma e cancro dos pulmões.
A imunoterapia biológica para o cancro da Biotecnol é uma molécula
criada para se dirigir para um antigénio que se encontra nas células de
vários tipos de cancros sólidos (e que quase não está presente nas
células normais). Esse antigénio foi descoberto nos anos 90 no Instituto
de Manchester do CRUK.“Por terem sofrido mutações no seu ADN, as
células cancerosas dividem-se sem controlo e adquirem propriedades
durante essa divisão descontrolada de invadir outros tecidos e de não
morrer. Têm a capacidade de se espalharem pelo organismo usando os
sistemas circulatório e linfático, dando origem a metástases”, explica o
investigador Pedro de Noronha Pissarra, presidente da Biotecnol.
“Certas células cancerosas ‘emitem um sinal’ chamado 5T4, ou antigénio
oncofetal 5T4. Este antigénio é uma proteína produzida pelas células
cancerosas que está associada à sua proliferação e consequente processo
de metastização. Uma célula cancerosa com elevado nível de 5T4 torna-se
incontrolável e agressiva e com forte poder para se metastizar.”
Ora a nova molécula – que tem o nome Tb535H – é composta por três
braços, que foram construídos e montados no laboratório, como peças de
lego. Dois desses braços têm um anticorpo (repetido) dirigido
precisamente para o antigénio 5T4, nas células cancerosas. No terceiro
braço há um outro anticorpo dirigido aos linfócitos T, mais
concretamente a uma molécula (um receptor) chamada CD3 que está à sua
superfície, para recrutar estas células imunitárias para este combate.
É
um biofármaco que procura ter uma precisão milimétrica, muito
específica e com várias funções, diz Pedro de Noronha Pissarra. “É como
um míssil direccionado para o ‘alvo 5T4’, que se liga apenas às células
cancerosas que ‘emitem o sinal’ 5T4, as que queremos eliminar, e não se
liga às células normais. Tem-se uma molécula com ‘dois braços’ de
reconhecimento selectivo apenas das células cancerosas com 5T4. Ao
ligar-se ao antigénio 5T4, o anticorpo não só selecciona as células
cancerosas como bloqueia o seu processo de propagação. Tem assim um
duplo efeito de reconhecimento e de bloqueio.”
Mas isto não chega
para destruir as células cancerosas. É preciso também matá-las e é aqui
que entra o terceiro braço da molécula. “Com um mecanismo de acção muito
inteligente e inovador, mas também muito difícil de desenvolver, os
cientistas da Biotecnol ‘montaram’ através de técnicas de engenharia
genética uma maneira de usar as próprias defesas imunitárias do doente,
para elas atacarem e matarem o tumor”, diz ainda o
investigador-empresário. “Os linfócitos-T, um subtipo de glóbulos
brancos, são as células do sistema imunitário envolvidas na protecção do
corpo contra doenças infecciosas e invasores externos. Existe um lugar
de ligação (como um magneto) nos linfócitos T chamado CD3, que, quando é
activado, os torna verdadeiras células assassinas”, acrescenta.
“Montaram um anticorpo atractor do CD3: atrai os linfócitos T e liga-os a
esse atractor, provocando assim a sua activação”, refere Pedro de
Noronha Pissarra.
Resumindo, o medicamento Tb535 primeiro liga-se
às células cancerosas através do antigénio 5T4 e, depois, aos linfócitos
T através do receptor CD3 e activa-os.
Aumentar
“O que o Tb535 faz é ligar-se com dois braços ao tumor que tem 5T4 e,
com um outro braço, atrai e activa os linfócitos T que passeiam pelo
sangue e direcciona-os para o tumor. Ao entrar em contacto com o tumor,
os linfócitos T libertam substâncias bioquímicas letais para o tumor,
que é destruído. No fundo, o que o produto faz é ‘educar’ os linfócitos T
para atacarem o tumor, que emite 5T4”, nota. “Isto só é possível se
existir este tipo de ligação entre a célula tumoral e o linfócito T
activado via a ligação ao CD3. Sem isso não funciona”, especifica ainda.
“É uma alternativa muito potente e mais segura aos tradicionais
fármacos químicos, geralmente associados a toxicidades graves nos
pacientes e baixa eficácia terapêutica, uma vez que não são
direccionados só para as células tumorais nem usaram o sistema
imunitário do paciente.”
Patente no mundo inteiro
A
Biotecnol foi criada em 1996 por Pedro de Noronha Pissarra (que ainda
detém uma parte da empresa), quando voltou para Portugal após o
doutoramento em biotecnologia no King’s College de Londres e de uma
passagem pelo Instituto de Tecnologia do Massachusetts (EUA) e da
Universidade Técnica da Dinamarca. “Ou fazia a Biotecnol para criar o
meu emprego ou emigrava. Nessa altura nada havia em Portugal.” O
regresso a Portugal foi “um balde de água fria”, como dizia à revista Science em 2003.
Durante muitos anos, a empresa desenvolveu produtos para a indústria
farmacêutica (como citocinas, factores de crescimento e anticorpos
clássicos). Mas, entre 2007 e 2009, avançou para a criação, em parceria
com uma empresa espanhola, do seu primeiro medicamento – a cardiotrofina
1. Foi o primeiro biofármaco criado em Portugal. Destinava-se à
regeneração do fígado, após um transplante ou corte de tecido canceroso.
Em 2009, foi vendido à empresa farmacêutica suíça Roche (“os montantes
são confidenciais por 15 anos”) e hoje não está em uso clínico (“não
temos nenhum controlo sobre as decisões da Roche sobre o que irá fazer
ao produto”). “Nunca ninguém desenvolveu um biofármaco neste país. Já
vamos no segundo.”
Agora, a empresa chegou acordo com o CRUK,
assinado no final de Julho: o centro britânico vai investir no
desenvolvimento do novo fármaco, em troca de uma percentagem da
Biotecnol (os termos do acordo são secretos). Criá-lo custou até hoje,
segundo Pedro de Noronha Pissarra, cerca de cinco milhões de euros.
“Esta
molécula será uma grande prova de conceito da nossa estratégia
terapêutica, se funcionar. Temos outras na linha de desenvolvimento. O
nosso objectivo principal é a comercialização desta molécula através do
licenciamento a uma multinacional e depois replicar o modelo de negócio
com outro produto da nossa linha. Este acordo com o prestigiado CRUK é
um passo gigante, pois dá-nos a possibilidade de licenciar o produto com
mais valor acrescentado.”
É
no âmbito desta parceria que surgirá o ensaio clínico nos 45 doentes,
em unidades londrinas como o King’s College Hospital, o Guy’s Hospital e
o Royal Marsden Hospital. Vai incluir doentes cujas biópsias sejam
assim positivas para o antigénio 5T4, em cancros dos rins, pescoço e
cabeça, pulmões, mama e cólon, entre outros. Num ensaio clínico de fase I
como este testa-se a segurança, a dose máxima tolerada e os primeiros
sinais da eficácia do fármaco consoante o tipo de cancro. E, nos dois
anos seguintes após o tratamento, irá ver-se a sobrevivência dos
doentes.
Este ano, a patente já foi pedida para o mundo inteiro.
Por isso, a partir de agora os resultados das experiências já feitas em
animais poderão ser publicados. Foi o grupo de Nuno Sousa, da
Universidade do Minho, em Braga, que fez essas experiências. “Cobaias
com tumores da pleura do pulmão, que não eram tratadas, morriam a uma
velocidade vertiginosa. Quando administrávamos a nossa molécula nessas
cobaias, o tumor era completamente erradicado”, garante Pedro de Noronha
Pissarra.
“A imunoterapia é a grande inovação da indústria farmacêutica na luta contra o cancro”, resume. “Em 2013 a revista Nature classificou-a
como o avanço do ano. É uma mudança total de paradigma na luta contra o
cancro. Os especialistas prevêem que passe a ser a espinha dorsal do
trabalho oncológico presente e futuro, através da administração de
combinações de biofármacos ‘inteligentes’ e ‘programados.’”
Simplificando,
o sistema imunitário produz anticorpos contra substâncias (antigénios)
oriundas, por exemplo, de vírus ou bactérias, para que estas ameaças
sejam reconhecidas e destruídas pelas células imunitárias. Cada
anticorpo é específico e direccionado para um determinado antigénio.
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