Público

Orquestras de pessoas sem abrigo

Conhecem a rua melhor do que ninguém

e fazem música

Por Ana Cristina Pereira

Que bem que lhe vai saber regressar a Lisboa. "É a cidade mais bonita do mundo. Sou lisboeta e bairrista." Saiu de lá há mais de um ano. Esta quinta-feira, regressa com uma missão: encerrar, lá para as 17h15, o seminário Limites na Intervenção com Pessoas Sem Abrigo. Nunca pensou tocar na Fundação Calouste Gulbenkian. "É uma sala XPTO."

Jorge Augusto dormia no albergue da Assistência Médica Internacional (AMI), na mais periférica freguesia do Porto, quando ouviu falar no Som da Rua - "a orquestra de quem, melhor do que ninguém, conhece a rua" -, um projecto do Serviço Educativo da Casa da Música. Foi espreitar os ensaios. "Meu Deus! Não sabiam termos técnicos, mas faziam tudo com tanta alegria!"

Naquela roda, apenas técnicos e sem-abrigo. Que não haja equívocos:sem-abrigo não é apenas quem dorme na entrada de um prédio, numa estação de metro ou comboio, dentro de um carro ou de um contentor; é também quem recorre a albergues nocturnos ou a espaços cedidos por familiares ou pagos pela Segurança Social; é todo aquele que carece de habitação digna e estável.

Impossível não se identificar com quem ali fazia música com garrafas-chuva ou tampas-serpentina - instrumentos criados a partir de garrafas ou tampas de plástico. Havia, porém, algo que o incomodava: "E depois? E se alguma pessoa me reconhecia?" Não gostava que o vissem como sem-abrigo. Quem gostaria? Ultrapassou isso: "O que é que podem dizer? Estou a lutar por uma vida melhor e a usar a música para me divertir."

O ensaio é o ponto alto de uma semana muito pautada pelas idas às instituições que o assistem. Quartas-feiras, aparece antes das 14h00 à porta do número 139 da Rua dos Mercadores, uma artéria estreita, empedrada e inclinada da Ribeira do Porto. "Consigo encontrar paz, amizade, alegria. Sinto-me tão bem comigo mesmo ao fazer isto."

A orquestra apareceu na cabeça de Jorge Prendas - que escreve para várias formações e faz parte do quinteto a cappella Vozes da Rádio. Em Julho de 2009, apresentou-a ao coordenador do Serviço Educativo, cargo que agora ocupa. Findo o Verão, estava "a partir pedra". Urgia identificar parceiros, conquistá-los. Em meados de Outubro, arrancavam os ensaios.

Primeiro, ensaiavam no Serviço de Assistência das Organizações de Maria. O grupo cresceu, cresceu, cresceu e deixou de lá caber. Agora, que já integra umas cinco dezenas de pessoas, ensaia nas antigas instalações da Fundação para o Desenvolvimento do Centro Histórico do Porto.

Não houve processo de selecção. Seleccionar era negar o ideal de incluir todos os que o desejem. E Jorge Prendas pensou neste projecto como "um oásis" - "um modo de as pessoas se sentirem bem com elas próprias, interagirem, ouvirem música, fazerem música". Acredita que actuar "pode colocar sobre elas uma luz que elas nunca tiveram na vida".

Jorge Prendas sonhou com uma orquestra de pessoas sem abrigo. E nasceu o Som da Rua, um projecto do Serviço Educativo da Casa da Música. Hoje, há espectáculo na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Começou com um prato

Jorge Augusto tem 40 anos e nunca se atrevera a sonhar com algo como o Sonópolis 2010, espectáculo feito com vários projectos educativos da Casa da Música. "Mais de mil pessoas na Casa da Música! Senti que fazia parte de uma coisa tão bonita. Senti-me tão cheio. Melhor do que se tivesse visto a minha banda favorita - os The Cult."

Não se pense que é fácil - Jorge Prendas já sofreu até ameaças à integridade física. Aqui juntam-se vidas enleadas. Como a do trompetista romeno, que andava a tocar na rua e deixou de aparecer para ter mais tempo para trabalhar. Ou a idosa portuguesa que os pais não cuidaram, que o marido tanto maltratou e que ali se eleva para cantar Povo que lavas no rio. Maior estrela que ela só o homem de gorro que interpreta O menino vadio - uma canção que é quase um choro aprendido ao crescer na Casa do Gaiato. Tudo o resto é original.

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