JN

Mortos de ninguém

(Uma má notícia pode transformar-se numa boa notícia quando nos faz despertar para a realidade e nos convoca para uma atitude nova)

Morreram no Porto e só foram descobertos dias depois
Leonor Paiva Watson

No espaço de três dias, foram encontrados no Porto seis pessoas mortas em casa, cujos corpos estavam já em estado de decomposição. Em todos os casos, o que chamou a atenção dos vizinhos foi o cheiro. Em comum, a absoluta solidão. São mortos de ninguém.

Na Ribeira, centro histórico da cidade do Porto, onde as relações parecem mais próximas, morreram cinco pessoas nestas condições. Uma delas foi encontrada um mês depois. Só o cheiro intenso denunciou a situação.

Até lá, nada levantou suspeitas: uma persiana que nunca mais se levantou ou o facto de ele não aparecer na rua há um mês. Nada, a não ser quando o cheiro começou a incomodar o próximo. E onde estava o próximo? O que acontece para que alguém morra em casa sem que ninguém dê por isso até um mês ou 15 dias depois?

“O que acontece é que as cidades (e as cidades é onde isto acontece mais frequentemente) fomentam o individualismo, o anonimato, a distância social”, começa o sociólogo Luís Fernandes. Na cidade, o Homem é obrigado a conviver permanentemente com o estranho, criando defesas . É tudo tão grande que tudo pode ser possível, tanto que já nada espanta, “há de facto a falência do espanto. É o cinismo”, explicou.

Uma perda de espanto bem presente nos vizinhos destes mortos de ninguém. “Pois, ele vivia aqui no meu prédio. Impressionado, eu? Nem cá estava...”, disse um dos vizinhos de Manuel Correia Jorge, cujo corpo só foi encontrado um mês depois, numa cadeira, na sua casa, na Ribeira.

“Esse aqui da Lada era estrangeiro. Pois, se era estrangeiro...”, disse um outro, a propósito de outro indivíduo que morava também na Ribeira e cujo corpo também foi encontrado apenas dias depois.

Pelas ruas, cafés e mercearias toda a gente sabe, mas fala-se disso como de outra coisa qualquer: “é a vida, é a vida”. Apenas uma mulher, vizinha de um outro homem foi encontrado morto na sua casa, na Avenida de Rodrigues de Freitas, confessou que “uma coisa destas impressiona muito”.

“Nem vontade tenho de ir à rua. Uma pessoa morrer e só ser encontrada muito tempo depois é uma coisa muito triste”, lamentou.

Comentários

Mensagens populares deste blogue