A Democracia em expansão

Obra de John Keane, que revisita glórias e dissabores experimentados pela Democracia, interroga-se sobre a sustentabilidade da tendência observada, após a II Guerra Mundial - com destaque para Portugal -, para a Democracia se tornar regime universal. Chega às livrarias esta semana.
SELECCÇÃO E REEDIÇÃO DOS EXCERTOS ELMANO MADAIL, MADAIL@JN.PT

À História que nos está mais próxima é sempre a mais difícil de resumir. Vai daí que nos saiam estas questões embaraçosas: que dirão os futuros historiadores sobre o renascimento, à escala mundial, dos ideais e instituições democráticos, nas décadas que se seguiram a 1945?

Será que vão concluir, como é usual, que se tratava de democracia representativa ou poderá, afinal, dar-se o caso de que venham sugerir algo de surpreendente: que a Índia e a sua democracia banyan não eram uma anomalia asiática, mas antes uma experiência que o Mundo fazia e apontava na direcção de uma transformação da democracia em todo o orbe? E a respeito das democracias que funcionaram, até que ponto terão satisfeito os padrões destes historiadores? Contas feitas, quais foram os seus pontos fortes e quais os pontos fracos, e, na globalidade, como é que se saíram? Terão conseguido sobreviver?

Há um ponto que é surpreendente: houve uma dimensão de alcance global na fuga empreendida pelos ideais e instituições democráticos para se libertarem das garras da crueldade, da ditadura, do totalitarismo e da guerra global. Pela primeira vez na sua História, a democracia, na maneira em que é vivida, tornar-se-ia familiar à maioria das pessoas, sendo posta à experiência nos quatro cantos do planeta. É certo que havia precedentes; e que, após 1945, a democracia teve vários contratempos, em várias ocasiões e regiões, principalmente nos estados ricos em petróleo do Médio Oriente e na África subsaariana. No entanto, o que mais impressiona é que, por mais de meio século após 1945, se tenham dado milagres democráticos em todos os continentes.

Na Ásia, à guisa de reacção alquímica, a ocupação militar do Japão faria disparar uma revolução democrática de cima a baixo. O êxito deve-se ao facto de que, aí, em milhões de pessoas arruinadas e malnutridas, foi crescendo certo desprezo pelos seus amos imperiais, estando, como estavam, fartos de guerra. Em Taiwan, emergia uma democracia orgulhosa e aguerrida. Impulsionada pela resistência a uma ditadura brutal, vinha desdizer o preconceito europeu de que os "asiáticos" eram por natureza deferentes, ou então, que associavam a ideia de democracia ao jogo de azar, à prostituição, à ruptura familiar e outras formas de decadência ocidental. Em vez disso, Taiwan mostrava que era possível uma democracia com características "asiáticas" e até mesmo que, em pouquíssimo tempo, milhões de pessoas podiam abraçar e ter por sacrossanto o direito ao voto livre e equitativo. A experiência taiwanesa significado mais: com o dragão chinês a chamuscar-lhe os calcanhares, Taiwan, sem o reconhecimento diplomático da maioria dos estados do Mundo, desafiou, ainda assim, a regra segundo a qual a democracia só podia sobreviver num "país" com fronteiras territoriais "soberanas".

No extremo oposto, num cenário igualmente hostil, não se mostrava menos notável o novo Estado de colonos chamado Israel, fundado em 1948 como meio de salvamento face ao genocídio na Europa. Tratava-se aqui de uma democracia parlamentar, mas com um estilo só seu. Tendo infuso o espírito do judaísmo, integrava também uma minoria de israelitas árabes digna de nota. E entre os seus traços contavam-se um sistema eleitoral baseado na representação proporcional, um primeiro-ministro eleito directamente, um poder judiciário forte e independente, uma imprensa livre e uma sociedade civil robusta.

Não menos impressionante foi a maneira como aterrou a democracia na ponta mais a sul da África, finalmente livre da presunção racista dos brancos. Em Fevereiro de 1990, milhões de pessoas por todo o Mundo viram, na televisão, Nelson Mandela a sair da prisão para a liberdade passados 27 anos. De fato castanho claro e gravata, Mandela esmurrou o ar com uma saudação de vitória, acenando a quem lhe viera desejar felicidade. Depois, na Cidade do Cabo, aí o vemos, a ser cumprimentado sob um sol escaldante, por uma multidão estimada em 250 000 cidadãos, alguns dos quais, aliás, pendurados em ramos de árvores, querendo apenas um vislumbre do seu líder pela primeira vez na vida.

O que é que fez acontecer todas estas mudanças? Como sucede nos momentos importantes da sua História, a difusão da democracia teve múltiplas causas e agentes. Durante o meio século que se seguiu à II Guerra Mundial, o dedo da democracia eleitoral tocou praticamente todos os recantos da terra, muitas vezes de maneira casual e imprevisível. A dialéctica da democracia desafiava todas as leis científicas, e, desde logo, aquelas que supunham ter de haver nexo entre democracia e classe média forte, ou uma afinidade próxima entre protestantismo e democracia, ao facto de ela ser dependente de desafogados níveis de alfabetização e de educação institucional. A regra era que não havia regras: onde e quando se viesse a dar a democratização, isso acabava por acontecer de modo contingente.

E não havia um factor único que explicasse o sucedido em cada caso. Como acontecera desde tempos idos, sempre fiel a si mesma, a democracia era e continuava a ser um enigma. Guardando os seus segredos com cautela, víamo-la a aparecer de diferentes maneiras em momentos diferentes, e sempre na companhia de amigos diferentes.

O facto de a democracia se mostrar aleatória e esquiva foi precisamente aquela sua qualidade que, depois de 1945, iria encarecer o sentimento de que os ideais e instituições democráticos se tinham tornado um fenómeno global a ser impulsionado por forças de todos os tipos. Uma das mais poderosas era a que ficaria conhecida por "poder do povo": a determinação dos cidadãos em porem termo à governação prepotente e intimidatória que tivesse ido além dos limites, abusando da autoridade e incapaz de realizar promessas. Ameaçados pelo desencanto da população face a um poder violento, por todo o lado, os ditadores começaram a ficar em apuros. Não foram poucos os que adoptaram o novo nome de democratas.

Muitos ditadores viram-se obrigados a retirar ou a ficar na defensiva, por vezes, até mesmo em situações dramáticas e diante dos meios de comunicação. Veja-se o célebre discurso de Nehru e do seu "encontro com o destino" - uma das primeiras grandes obras de retórica nesta nova fase da História da Democracia. Em 1963, a sua força retórica seria igualada pelo frémito que causou esse "Ich bin Berliner" de J. F. Kennedy. O presidente americano enfatizou vigorosamente a indivisibilidade da liberdade e a idoneidade dos democratas de todo o Mundo para virem reclamar a cidadania berlinense. "A liberdade tem muitas dificuldades e a democracia não é perfeita, mas nunca teve a necessidade de erguer um muro para manter o povo da lá dentro e para impedir que a abandonasse", disse.

Era a convicção de que a democracia era uma arma poderosa contra a violência de governos bordejados por muros e escorados por prisões e exércitos e era também esta linha a convicção que, mais tarde, haveria de levar milhões de pessoas a fixarem o olhar num dramaturgo checo que fora preso por ter desafiado as autoridades estatais. Atirado para a prisão, Vaclav Havel deu por si no centro de uma campanha mundial que reclamava a sua libertação. Entretanto, um jovem, levando consigo apenas um saco de compras, pôs-se a lutar sozinho contra uma coluna de tanques chineses, volvido um dia desde o massacre na Praça de Tiananmen. Uma mulher, Aung San Suu Kyi - luminosa colecção de estranhas vitórias, em birmanês - fez destroçar um pelotão de fuzilamento, quando os soldados, que já tinham recebido a ordem de tiro, perderam a vontade de apertar o gatilho. Então ela caminhou por entre eles, graciosamente só e sem medo; mais tarde foi posta em prisão domiciliária e assim ficou.

As décadas seguintes a 1945 viram bastantes contratempos. Houve quem dissesse que um terço das 32 democracias vigentes em todo o Mundo em 1958 (mais 12 do que em 1945), em meados dos anos 70 já tinham degenerado em autoritarismo; e também se disse que, em 1962, no Mundo inteiro, 13 governos tinham saído de um golpe de Estado; em meados dos anos 70, o número de ditaduras militares tinha triplicado, chegando a 38 países. Esta tendência foi assinalada por momentos ingratos e, às vezes, as coisas ficaram feias.

Não obstante, as tendências antidemocráticas eram insustentáveis e, por todo o lado, os governos autoritários pareciam destinados a sofrer contratempos ou mesmo a derrota definitiva. Tendo em conta a terrível violência do século XX, a maioria dos democratas queria agora um Mundo sem arame farpado, nem tanques, nem gás lacrimogéneo, queriam viver sem serem inquietados pelo estrondo temível de botas a martelar as ruas. "Por regra", disse o democrata polaco Adam Michnik, "a ditadura garante ruas seguras juntamente com o pavor do toque da campainha. Numa democracia, as ruas poderão não ser seguras após o sol-posto, mas de madrugada o visitante mais provável é sempre o leiteiro".

Esta imagem soava verdadeira a milhões de pessoas em todo o Mundo. Assim também em Portugal, onde, pouco após a meia-noite de 25 de Abril de 1974, os jovens militares à frente do Movimento das Forças Armadas (MFA) executaram uma operação completamente planeada contra os líderes. Unidades militares tomaram posse dos principais edifícios governamentais. Além disso, foram ocupados os correios, a sede da companhia telefónica, as estações de rádio e televisão e ainda os aeroportos. Ao fim da manhã, com a ditadura de Marcello Caetano totalmente isolada do mundo exterior, multidões juntaram-se nas ruas de Lisboa para aclamar os soldados de serviço. Como a celebrar o novo espírito da democracia, cravos vermelhos frescos foram enfiados nos canos bem oleados das espingardas daqueles que eram os antigos adversários. Nessa mesma tarde, Caetano rendia-se. Começava a transição para a democracia.

Destino semelhante foi o da vizinha Espanha. Aí o governo militar desmoronar-se-ia a seguir à morte (em Novembro de 1975) do ditador, o general Franco - ligado à guerra civil que levara à instalação de um "terror branco" feito de represálias contra os adversários, incluindo o alastramento das execuções e dos desaparecimentos, o internamento em campos de concentração, a condenação ao exílio e a execução sumária de dezenas de milhar de cidadãos.

A sensação, como que saída das próprias vísceras, de que os governos autoritários tinham ido além das marcas era particularmente forte na América Latina, a terra natal da democracia dos caudillos. Aí, as ditaduras militares haviam de entrar em derrocada como se fossem prédios em chamas.

Comentários

Mensagens populares deste blogue