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Política

Músicos de intervenção não estão contentes com o país

por Lusa

Cantaram contra a ditadura, usaram a voz em prol da Revolução. Hoje, Manuel Freire, Francisco Fanhais e José Mário Branco, músicos de intervenção, reconhecem que não estão contentes com o país que têm.

À margem do ciclo de debates "A Guerra Colonial, presenças e regressos", organizado pela Associação Portuguesa de Escritores, na terça-feira à noite, a agência Lusa falou com os três músicos sobre o estado do país.

"Quem tanto sonhou não se pode contentar com tão pouco", sentenciou Francisco Fanhais, comparando as aspirações de quem viveu o 25 de Abril com o país entretanto conseguido.

"Obviamente tinha outras esperanças, outras aspirações", diz Manuel Freire, criticando a "falta de ética", "o comportamento execrável dos políticos, quase todos" e "a corrida ao dinheiro e ao poder de uma forma absolutamente despudorada".

"Percebi que eu, e a minha geração, e muitos que queriam mudar isto, fomos derrotados", assume José Mário Branco, falando numa "transição relativamente suave de um capitalismo atrasado para um capitalismo mais moderno".

Manuel Freire, Francisco Fanhais e José Mário Branco acompanham os novos movimentos sociais e consideram "necessário ultrapassar as formas clássicas de mobilização". Fanhais começa por dizer que "é bom que efetivamente este movimento se amplie, porque é mais uma maneira de fazer tremer o poder". Mas, por outro lado, sublinha, "também é importante uma manifestação organizada".

"Prescindir dos partidos à partida parece-me perigoso", diz o autor dos discos "Canções da Cidade Nova" (1969) e "Cantilena" (1970).

"Eu acho que os jovens têm que se mobilizar de qualquer maneira porque o que têm pela frente não é nada agradável", entende Manuel Freire, autor de "Pedra Filosofal". Reconhecendo que "nem sempre" está "de acordo com as palavras de ordem", sublinha, porém, que isso "não tem importância nenhuma", porque "o país atravessa dificuldades muito grandes" e os jovens "têm que mostrar que querem mudar a situação".

Ainda não há "um protesto consistente" e "o substrato é ainda muito geral, muito vago, encontra-se de tudo como na botica", afirma José Mário Branco, autor de "FMI" -- "não é bem uma música, é mais um texto cénico" --, que tem sido recuperado nas atuais manifestações públicas de contestação.

Confessa-se "atentíssimo" às recentes manifestações, embora não apresentem "soluções concretas para mudar o sistema social". Para mudarem o mundo, as pessoas têm de começar por mudar-se a si próprias -- é esta a mensagem de "FMI", que "não tem muito a ver com troikas ou não troikas", mas com "vencer as marés de lama, de estagnação, de indiferença".

Hoje, diz, há uma nova crise, a da classe média, com diplomas universitários e habituada a casa, carro e "frigorífico cheio", porque "a classe pobre", essa, "está sempre em crise, desde que nasce até que morre".

Admitindo que "as circunstâncias são completamente diferentes", Manuel Freire não deixa de considerar que "o papel interventivo das canções diluiu-se um bocado".

A exceção, diz, é o rap, mas "as pessoas não estão atentas". Opinião partilhada por Francisco Fanhais, que fala da mudança dos cantores de intervenção, que tinham "assim um certo ar intelectualizante", para uma música com "um ar muito mais directo", assente em grupos de rap ligados a áreas suburbanas de Lisboa, com um resultado que "não é intelectual, mas é pensado, muito fruto daquilo que se vive".

Fenómenos como os Homens da Luta dividem estes músicos da Revolução. Enquanto para Manuel Freire eles não são "uma canção de protesto", mas "mais uma brincadeira, que tem a sua importância", representando "uma caricatura da caricatura", para Francisco Fanhais os Deolinda, os Homens da Luta "fazem música e através dela, com mais ou menos êxito, mais ou menos eficácia", mostram que "não se resignam ao estado de coisas".

Quem fez música antes do 25 de Abril, recorda Fanhais, não tinha "mais do que voz, viola, garganta, palhetas e os poemas" -- mas usou tudo isso para dizer "não" e "hoje é preciso dizer não a uma quantidade imensa de coisas".

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