Jornal de Notícias
* Conhecer o mal (negativo) pode ser-nos útil para mudarmos de rumo (positivo)

Quando o trabalho mata

HELENA NORTE

Crescentes exigências profissionais, em nome do lucro rápido, geram doenças, acidentes e mortes.

A onda de suicídios na France Telecom - 25 desde Fevereiro do ano passado - é a expressão mais dramática de uma pandemia global. A degradação das condições de trabalho chegou ao ponto de haver quem prefira acabar com a vida a laborar sob excruciantes pressões.

Outros vão aguentando, definhando todos os dias com todo o género de sintomas psicológicos e físicos. Suportam porque o desemprego é como uma espada que paira sobre a cabeça de quem depende do salário para sobreviver.

No gigante francês de telecomunicações, terá sido mais a forte polémica que a situação está a causar a nível nacional - e não tanto a morte de 25 pessoas e as 14 tentativas de suicídio - que levou, esta semana, à suspensão do plano de reestruturação. Didier Lombard, presidente da companhia, chegou mesmo a classificar a série de suicídios como uma "moda".

Em Portugal, como seria de esperar, não há estatísticas ou estudos credíveis sobre a matéria. Há dados avulsos e não explicados. Como o facto de as baixas médicas, em Setembro, terem aumentado 60% em relação a igual mês de 2008.

Os especialistas alertam para o impacto do burnout - uma condição de exaustão emocional e esgotamento físico devido a stressores laborais - não só na saúde e na qualidade de vida dos trabalhadores, mas, também, na produtividade das empresas. Ou seja, as políticas empresariais que visam apenas o lucro estão, paradoxalmente, a gerar factores que diminuem a produtividade.

Que empresas são estas que impõem condições tão desumanas de trabalho? O que aconteceu para que, nos últimos anos, a doença, o sofrimento e as mortes associadas ao stress laboral tenham atingido níveis tão preocupantes?

A eclosão da crise económica é uma explicação demasiada simplista. Há uma muticausalidade que emerge das profundas e rápidas mudanças sociais.

O paradoxo da filosofica do lucro

Produzo, logo existo - poderia ser a nova declaração de identidade dos tempos actuais. Num Mundo cada vez competitivo, o valor do indivíduo está indexado ao volume de trabalho que produz. A gestão por objectivos é, em muitas empresas, um eufemismo para a total desregulamentação das condições de trabalho.

O objectivo é só um: aumento da rentabilidade, pela via da redução de custos (trabalhadores e salários) e a imposição de objectivos crescentemente exigentes. "O homem transformou-se numa máquina produtiva, sem capacidade de controlar nada - só serve para cumprir ordens -, sujeito a pressões insuportáveis e a ameaças constantes", considera Rui Mota Cardoso, psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Para Manuel Carvalho da Silva, "a subversão das políticas empresariais" levou a que "a acumulação rápida de capital se tenha tornado o principal objectivo, e não a criação de bens e serviços". "O emprego é instrumental e serve como plataforma de especulação financeira. Não é por acaso que muitas empresas ao anunciar despedimentos vêem a sua cotação subir na Bolsa", acrescenta o dirigente sindical e doutorado em Sociologia do Trabalho.

Tristemente irónico é que a filosofia do lucro rápido esteja a ter resultados paradoxais. Trabalhadores exaustos física e mentalmente, desmotivados, que sentem ser uma peça insignificante numa poderosa e voraz engrenagem, produzem menos e com níveis inferiores de qualidade e faltam mais. Ou seja, a pressão para maximizar a produção conduz, em última instância, a perdas de rentabilidade, frisa Mota Cardoso.

Carvalho da Silva enfatiza o facto de jornadas muitolongas e penosas de trabalho causarem mais doenças e acidentes profissionais, o que penaliza, além do trabalhador, a empresa e a própria sociedade. E alerta: "Portugal é um dos países da Europa onde o agravamento dos factores de precariedade está a ser mais acelerado".

O descontrolo dos horários de trabalho, que inviabilizam a conciliação entre as esferas profissional e pessoal/familiar, a mobilidade geográfica forçada, os ritmos violentos de laboração e a precariedade generalizada (não só dos contratados como também dos que têm vínculo) são, na perspectiva do coordenador da Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses, as principais causas do aumento do stress laboral.

"Há cada vez mais gente que deixou de ter trabalho, que deveria ser desafiante e gerador de realização pessoal, para ter um sacrifício diário, algo que se tem de fazer para se sobreviver", sublinha Rui Mota Cardoso, acrescentando que o fomento da competição entre colegas teve como consequência a destruição das redes de suporte, fragilizando, ainda mais, o trabalhador.

À medida que o stress aumenta, porque "a pessoa sente que não é capaz de responder às exigências", cresce a ameaça de perder o emprego que confere um duplo estatuto: económico e social. "Quem não produz, não presta. Basta ver como os idosos e reformados são desvalorizados", alerta.

O burnout é a última fase do stress laboral. O constante stress diminui as resistências do indivíduo, tornando-o mais vulnerável a uma constelação de sintomas físicos, psicológicos, familiares e sociais. Surgem insónias, dores de cabeça, desordens digestivas, tristeza, desinteresse, irritabilidade, perda da capacidade de concentração, isolamento social, problemas relacionais e muitos outros sinais de alarme, de acordo com Rui Mota Cardoso.

Comentários

Mensagens populares deste blogue