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Saúde
As emoções de sobreviver
a um cancro da próstata
por Dana Jennings
O testemunho na primeira pessoa de um jornalista norte-americano que superou a doença e reaprendeu a viver com um novo olhar sobre o mundo
Parafraseando atrapalhadamente Greta Garbo, quero ficar em casa. Hoje em dia, mais do que nunca, quero encolher o mundo, reduzindo-o às duas divisões da minha casa onde me sinto mais confortável. Tenho recusado compromissos que me tomam o tempo, e a roda-viva social é menos atraente do que já foi. Para mim, um serão perfeito é muitas vezes esticar-me na sala e perder-me num bom romance ou num CD.
Ao longo do último ano, durante o qual me submeti a um tratamento agressivo do cancro da próstata (operação, radiações, terapia de hormonas) passei a precisar desse tipo de serões. Fazia parte do processo da cura, da aceitação da minha nova vulnerabilidade.
Tenho de reconhecer que o impulso para esse comportamento é agora mais perigoso, já que estou a braços com uma depressão pós-tratamento. Existe uma fronteira muito ténue entre procurarmos o aconchego que cura e o corte com o resto do mundo.
Mesmo assim, apetece-me ficar na ronha. Estou bem, fisicamente. As análises de sangue não poderiam estar melhores e faço caminhadas regulares de uns sete quilómetros. No entanto, o meu espírito ainda está em convalescença. Tenho um enorme desejo de dias caseiros, construídos em redor da escrita, da leitura e do tempo passado com familiares e amigos.
Cresci no norte da Nova Inglaterra [Nordeste dos EUA], e estou a alimentar o eremita ianque que vive dentro de mim, a quem nada agradaria tanto como viver numa casa de toros de madeira no fim de uma estrada acidentada e só usada por madeireiros. Venho de uma longa linhagem de homens de mau feitio que passavam os dias a lutar com tartarugas, a franzir o sobrolho aos peixes do rio, a estoirar carros e a vasculhar no lixo.
Gosto do meu café - e também da cerveja - simples e negro, forte, e ultimamente mesmo com um travo amargo. Retiro prazer dos mais suaves ritmos do quotidiano: passear o cão, encontrar-me com um amigo ao pequeno-almoço, ir cortar o cabelo. E a solidão é uma companheira agradável.
Ainda estou a reinterpretar a minha própria pessoa em função do cancro, e isso leva tempo e precisa de sossego. Não me podem apressar, não consigo fazer isso e deixar enredar no burburinho da nossa cultura do sensacionalismo.
Não quero ser um entre dezenas de milhares de pessoas a berrar e a guinchar num jogo de futebol ou num concerto do Springsteen no estádio dos Giants. Uma hora de conversa a meia-voz no Starbucks é mais do que suficiente, e constitui o verdadeiro ADN das nossas vidas finitas.
Ao longo de todo este processo, tenho estado, consciente e inconscientemente, a simplificar a minha vida, como se estivesse a reduzir o meu lastro ao fundamental.
Descobri a profunda gratificação de reduzir o número de objectos que possuo em vez de me deixar possuir por eles. Entusiasma-me descartar-me de montanhas bafientas de livros de bolso, de pilhas instáveis de CD e de camisas de flanela cansadas que têm o ar de ter pertencido a Kurt Cobain. Elimino obsessivamente as mensagens de correio electrónico antigas, como se fossem células cancerosas.
O meu filho mais novo, Owen, levou com ele o nosso segundo carro quando foi para a universidade, que é longe de casa. E eu estou contente por já não ter o carro estacionado em frente de casa. Quanto mais compras eu conseguir fazer a pé, sem carro, melhor.
Ultimamente também tenho devorado romances-fantasia para jovens adultos: livros pejados de magia e de mistério, de autores contemporâneos como Neil Gaiman e Jonathan Stroud, de J. K. Rowling e Rick Riordan, de Ursula K. Le Guin e Cornelia Funke.
Sinto-me como que em demanda da inocência da juventude, tentando materializar o miúdo sonhador que passava horas e horas no alpendre de Verão a escrever e a ler e a desenhar, enquanto ouvia no rádio Sylvania, o do "S" de cabeça para baixo, por entre o crepitar da estática, um jogo dos Boston Red Sox do Carl Yastrzemski e do Tony Conigliaro.
Tenho saudades do rapaz que fui - toda a gente me chamava Andy nesse tempo e lugar - que não se imaginava vir a ter cancro e a cambalear, meio espectro, no vale das sombras da depressão.
Ao fazer a minha cura na sala, um destes dias, inalando "Inkheart" dos Funke e marimbando-me (com delícia) para o insistente toque do telefone, apercebi- -me de que tentava recriar aquele velho alpendre, na tentativa de tornar suficientemente gerível o meu mundo de agora e envolver-me nele como numa manta de oração.

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